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Livros digitais são imunes à incidência de impostos

Por Gustavo Brigagão

Segundo levantamento feito pela Association of American Publishers, em 2012, pela primeira vez na história, foram vendidos mais livros eletrônicos (ebooks) do que os tradicionais, produzidos em papel.

Esse fenômeno ocorre não só em relação a livros, mas a todos os demais meios de disseminação de cultura, conhecimento e informação. De fato, todos os principais jornais, revistas e periódicos do País e do mundo são também (alguns,principalmente, e outros, até mesmo, exclusivamente) veiculados em versão digital.

Esse artigo mesmo está sendo veiculado em formato digital e são numerosas, no país, as livrarias virtuais que vendem os mais variados títulos na modalidade ebook.

E há uma razão para isso.

Os instrumentos eletrônicos (tablets e celulares com a plataforma Android, ou Iphones, Ipads, PCs ou Macs) em que as obras, notícias e/ou informações são lidas apresentam enormes vantagens práticas para o leitor, quando comparados com as tradicionais versões físicas impressas dos demais veículos (livros, jornais e periódicos produzidos em papel). Destacamos algumas, entre várias outras:

(a) eles tornam a leitura muito mais fácil (ou, até mesmo, possível, para aqueles que apresentam alguma deficiência visual), em razão das funções de zoom, redimensionamento de letras, luminosidade etc.;

(b) são muito mais portáteis (bibliotecas inteiras podem ser guardadas em um mero celular, ou tablet);

(c) preservam incomparavelmente mais a natureza, visto que árvores deixam de ser cortadas para a industrialização do papel necessário à produção das versões impressas;

(d) apresentam sistemas de dicionário, referencia à internet e interatividade que tornam a leitura muito mais fácil, agradável, instrutiva e produtiva;

(e) permitem que a aquisição das obras literárias e informativas seja realizada de forma indiscutivelmente mais simples (download), se comparada com aquela relativa às versões impressas, que dependem dos tradicionais meios de distribuição e logística.

Em outras palavras, na versão digital, os livros, jornais, revistas e demais periódicos (ebooks) realizam com muito mais eficiência a função que também é exercida pelas publicações em versão impressa: a disseminação da cultura, do conhecimento e da informação e a facilitação ao seu acesso.

Como todos sabem, a nossa Lei Maior estabelece específica limitação constitucional ao poder de tributar da União, estados, Distrito Federal e municípios consistente na vedação à instituição de impostos sobre “livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão” (artigo 150, inciso VI, alínea “d”).

Esse dispositivo constitucional visa evitar que, por meio de tributos, possa o Estado vir a criar obstáculos que impeçam a liberdade de expressão, ou permitam o controle da imprensa, dos meios de comunicação social e/ou das instituições culturais e educacionais. Em uma palavra, quer o texto constitucional assegurar a mais absoluta fruição e desimpedimento dos meios veiculadores de cultura, informação e conhecimento.

Pois bem, recentemente, foi reconhecida repercussão geral (no Recurso Extraordinário – RE 330.817) relativamente à extensão da imunidade acima referida aos livros eletrônicos (mais especificamente, a Enciclopédia Jurídica Eletrônica), nos seguintes termos: “A transcendência dos interesses que cercam o debate são visíveis tanto do ponto de vista jurídico quando do econômico. A controvérsia acerca da subsunção dos novos meios de comunicação à norma imunizante é objeto de acalorado debate na doutrina e na jurisprudência, sendo inegável a repercussão econômica que dela pode advir, tendo em visa que a extensão do favor constitucional a um novo e expressivo contingente de bens pode causar considerável impacto no erário. No âmbito jurídico, a controvérsia repousa na dicotomia atualmente existente na hermenêutica quanto à interpretação do art. 150, inciso VI, alínea d, da Constituição Federal. Dependendo da corrente hermenêutica adotada, se restritiva ou extensiva, o dispositivo terá essa ou aquela interpretação. A corrente restritiva possui um forte viés literal e concebe que a imunidade alcança somente aquilo que puder ser compreendido dentro da expressão papel destinado a sua impressão. (…) Em contraposição à corrente restritiva, os partidários da corrente extensiva sustentam que, segundo uma interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional, a imunidade serviria para se conferir efetividade aos princípios da livre manifestação do pensamento e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica ou de comunicação, o que, em última análise, revelaria a intenção do legislador constituinte em difundir o livre acesso à cultura e à informação.” (STF, Plenário, Repercussão Geral no RE nº 330.817, Ministro Relator Dias Toffoli, DJe 28.09.2012)[1]

Basicamente, portanto, sob o ponto de vista jurídico (que é o que deve interessar), a discussão gira em torno de se definir a forma como deve ser interpretado o dispositivo constitucional acima referido.

Mais especificamente, se dele será possível extrair a conclusão de que, por fazer o dispositivo constitucional expressa referência ao “papel destinado à sua impressão”, estará ele restringindo a aplicação da regra de imunidade às hipóteses em que se trate de textos veiculados na forma impressa, excluídas as versões eletrônicas (ou digitais).

Em suma, a discussão que se trava põe em lados opostos a interpretação literal e a teleológica.

A intepretação literal é a pior das interpretações.

Ela está prevista no artigo 111 do Código Tributário Nacional (CTN) especificamente para normas que disponham sobre suspensão ou exclusão do crédito tributário; outorga de isenção; e dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias. Não há menção nesse dispositivo (nem em qualquer outro) à aplicação desse processo hermenêutico às regras de imunidade, que têm por objeto hipóteses de não-incidência qualificada, e não de suspensão ou exclusão do crédito tributário.

Mas, mesmo para a aplicação da interpretação literal aos institutos expressamente previstos no art. 111, acima referido, há que se fazer ressalvas, como ensina Gilberto de Ulhôa Canto, um dos membros da Comissão Elaboradora do Anteprojeto do CTN:

“2.2.21. Na verdade, hoje penso que teria sido mais certo (e, nesta afirmativa é claro que faço a minha autocrítica) limitar a matéria do CTN relativa à interpretação da legislação tributária apenas aos seus artigos 109 e 110 (estes, pela importância já assinalada, da sua função de obstar a que o sistema impositivo seja violado) e o atual artigo 112 (porque o princípio da aplicação da lex mitior, consagrado no artigo 106, II do CTN, tradicionalmente encontra correlação no método interpretativo mais brando), fazendo-os preceder, simplesmente, de um outro que consagrasse a tendência moderna ou abrisse margem para o recurso aos métodos usados na interpretação da lei em geral.

2.2.22. Considero inaceitável, já agora, a tese de que se deva interpretar literalmente a norma de lei que outorga isenção. Em conferência que fiz no Instituto dos Advogados Brasileiros em 1958 (vide meu “Temas de Direito Tributário”, ed. Alba, 1964, vol. 3º, pág. 195) admiti tal processo hermenêutico quanto às normas sôbre isenção, embora tivesse advogado a interpretação teológica sempre que se tratasse de imunidade. Hoje, estou convencido de que a literalidade não se justifica, sequer na interpretação das leis puramente isentivas.” (Parecer inédito)

Outra abordagem interessante do tema é a que se verifica no seguinte trecho do voto do ministro Xavier de Albuquerque, relator do acórdão proferido no RE 90.863-MG (1ª Turma):

“É certo que a norma que outorga isenção deve ser interpretada literalmente, nos termos do art. 111, II, do Código Tributário Nacional. Mas, a literalidade não deve chegar ao ponto de sacrificar a teleologia da regra interpretada.”
(RTJ 90/357)

Vê-se, portanto, que a interpretação literal, além de dever ser adotada com parcimônia, foi prevista pelo CTN para institutos outros que não o da imunidade (que, como dito, diferentemente da isenção, configura hipótese de não-incidência qualificada).

Mas, mesmo que houvesse tal previsão, ou seja, mesmo que essa técnica de hermenêutica fosse também aplicável às regras de imunidade, ainda assim, ela não levaria à conclusão de que seria vedada a extensão da imunidade em exame aos livros eletrônicos.

De fato, a circunstância de o dispositivo constitucional, ao estabelecer que são imunes a impostos os “livros, jornais e periódicos”, também fazer menção ao “papel destinado à sua impressão” não leva à interpretação literal de que somente os livros, jornais e periódicos produzidos em papel farão jus a essa exclusão de incidência.

O que se está dizendo, a meu ver, é que aqueles veículos de disseminação de cultura, conhecimento e informação estão livres de imposição tributária, e que, se forem produzidos em papel, esse insumo também será beneficiado.

Quanto ao porquê disso, há um aspecto histórico interessante.

Essa imunidade surgiu originariamente no artigo 31, inciso V, letra “c”, da CF/46, restrita ao “papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros”.

Isso mesmo, o bem imune originalmente era somente o papel destinado à impressão dos jornais, revistas e periódicos. Naquela época, a estratégia que se entendeu mais adequada foi a de excluir de tributação o principal insumo dos veículos de disseminação de cultura, conhecimento e informação então existentes de forma a evitar que eles fossem excessivamente onerados.

Foi com a Constituição Federal de 1967, posteriormente alterada pela Emenda Constitucional (EC) 1, de 17.10.1969, que a imunidade em exame passou a compreender não só o papel destinado à impressão, como os próprios livros, jornais ou periódicos (art. 19, inciso III, alínea d, da CF/67, com a redação dada pela EC 1/69), o que foi mantido na CF/88, como visto acima.

Ou seja, os princípios que nortearam a criação dessa limitação constitucional ao poder de tributar continuaram os mesmos desde o início da criação da respectiva norma (preservar a liberdade de expressão e assegurar o acesso de todos à cultura, ao conhecimento e à informação), e o que se buscou com a alteração redacional do dispositivo constitucional foi proteger pela regra de imunidade não só um dos principais insumos que predominavam à época (o papel), mas os próprios veículos que fossem consubstanciados na figura de um livro, jornal ou periódico.

Portanto, a interpretação literal da regra, com a sua atual redação, é a de que os livros, jornais e periódicos estão primariamente protegidos pela imunidade, e que, ao papel destinado à impressão desses veículos, deverá ser dispensado o mesmo tratamento tributário, já que, repita-se, era o insumo prevalentemente utilizado à época em que a norma foi editada. Note-se, ainda, que, mesmo com a expressa referência literal a um só dos insumos utilizados na edição impressa daqueles veículos, há jurisprudência do STF no sentido de que outros insumos, como equipamentos destinados à impressão gráfica, também seriam abrangidos pela imunidade (RE 202.149, STF, Primeira Turma, Min. Rel. Menezes Direito, Redator do Acórdão Min. Marco Aurélio, DJ 10.10.2011).

Mas, o que importa ressaltar é que nada há na redação dessa regra constitucional que restrinja a sua aplicação aos livros, jornais e periódicos que sejam produzidos a partir desse insumo (papel), mesmo que adotada a interpretação literal.

E à mesma conclusão chegamos se adotarmos a interpretação teleológica, que é a única apropriada para a regra em exame. Nesse sentido, destaco o seguinte trecho da decisão monocrática do ministro Marco Aurélio Mello proferida no RE 432.442 (DJ 16.03.2007), relativa à possibilidade de estender a imunidade a fitas que acompanhavam livros de ensino:

“Abandonem a interpretação meramente verbal, gramatical: embora seduzindo, por mostrar-se a mais fácil, deve ser observada em conjunto com métodos mais seguros, como é o teleológico.”

Como já tivemos oportunidade de mencionar, a indiscutível finalidade da norma de imunidade em exame é preservar a liberdade de expressão e assegurar o acesso de todos à cultura, ao conhecimento e à informação.

E, para que essa imunidade seja efetiva, ela deve abranger todas as situações em que haja veiculação de textos cujo conteúdo seja próprio de livro, jornal ou periódicos, qualquer que seja a forma adotada (impressa ou digital).

Como afirma Ives Gandra Martins, “admitir que só os veículos de papel são imunes e que qualquer outra manifestação cultural, educacional ou de imprensa seja passível de manipulação governamental, por tributos, é reduzir a intenção do constituinte a expressão nenhuma” (MARTINS, Ives Gandra da Silva, Aspectos Referentes à Imunidade Dos Livros Eletrônicos, RDDT 180/15126, setembro de 2010).

Destaco, ainda, o seguinte trecho do LIVRO ELETRÔNICO de Leandro Paulsen, também veiculado na versão impressa, intitulado Direito Tributário Constituição e Código Tributário á luz da doutrina e da jurisprudência:

“Livros, jornais e periódicos em outros suportes que não o papel. Cada vez mais os jornais e periódicos (e mesmo os livros) são lidos em meio eletrônico, através da Internet, podendo ser acessados de qualquer equipamento, seja de computador de mesa, de note book, de Kindle ou de iPad. Não nos parece que possa haver qualquer restrição à imunidade em função do suporte físico do livro, jornal ou periódico. Assim como uma música não deixa de ser música por ter sido baixada pela Internet, em meio eletrônico, também um jornal ou revista não deixa de se caracterizar como tal por serem lidos no iPad. Sua função e importância como veiculo da livre manifestação do pensamento segue idêntica.”

No exame dessa matéria, é importante que se tenha a mesma visão que, segundo Lawrence Lessig, teve a Suprema Corte Americana quando, em 1945, alterou o conceito de propriedade, que, à época, abrangia não só a superfície terrestre, como também o espaço aéreo que lhe era correspondente. Essa alteração se deveu ao fato de dois fazendeiros da Carolina do Norte terem, à época, ingressado em juízo para impedir que aeronaves militares utilizassem o espaço aéreo correspondente às suas terras. A Suprema Corte entendeu que o conceito até então vigente havia sido superado e que deveria ser interpretado de forma a se coadunar com o mundo moderno, que contava com aviões voando pelos céus.

O mesmo se aplica ao caso em exame.

Muito provavelmente, as gerações futuras de estudiosos do Direito Tributário ficarão estarrecidas quando tomarem ciência de que, em um passado distante, houve quem pretendesse deixar de aplicar ao livro eletrônico regras de imunidade que tivessem por finalidade a preservação da liberdade de expressão e do acesso à cultura, simplesmente porque não eram feitos de papel.

Para que os ilustres leitores tenham idéia do que sentirão esses estudiosos do futuro, basta que imaginem regra semelhante à ora examinada deixando de ser aplicada na antiguidade só porque o papiro ou o pergaminho, beneficiários originais, tinham sido substituídos pelo papel…


[1] Recentemente, foi reconhecida, também, a repercussão geral sobre a possibilidade de estender a imunidade ora em análise a acessórios (como fitas, DVDs etc) que acompanham os livros (RE nº 595.676, STF, Plenário, Min. Rel. Marco Aurélio, DJe 18.08.11).

Gustavo Brigagão é sócio do Escritório Ulhôa Canto, secretário-geral da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor na Fundação Getulio Vargas.

via Conjur – Consultor Tributário: Livros digitais são imunes à incidência de impostos.

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